AGRICULTURA 4.0, a questão pendente
25 November, 2020
Atualmente, 53% da população mundial conta com ligação à Internet, há mais terminais móveis do que pessoas no mundo, 90% dos dados gerados surgiram nos últimos dois anos e, dentro de apenas mais 10 anos, chegaremos a produzir 50 biliões de dados por segundo. É indesmentível que estamos em plena quarta revolução industrial e que a transformação digital se alarga a ritmo acelerado, catapultada pelas inovações na transmissão de dados, especialmente graças à nova cobertura de redes 5G. Mas será que esta indústria 4.0 chegou a todos os setores com a mesma eficácia? Que impacto teve na Agricultura?
A escassez de um recurso tão importante como a água faz com que a rega localizada seja uma das atividades agrícolas que há muitos anos vem aproveitando a geração de dados e a sua análise, sensores no terreno, sondas que medem diversas variáveis, software que processa os dados, aplicações que regulam através de telemática a abertura ou encerramento de setores de rega, etc. Uma informação que facilita a tomada de decisões por parte dos agricultores, para fazer a melhor escolha sobre quando realizar uma rega, a sua dotação e periodicidade, entre outros fatores. É verdade que a o advento destas novas tecnologias e a diminuição dos preços de determinadas soluções levaram à multiplicação exponencial da informação gerada, com a mesma a abarcar atualmente muito mais variáveis e métricas do que há alguns anos atrás.
A maquinaria agrícola também tem vindo a incorporar inovações tecnológicas úteis para o setor, sendo uma das mais utilizadas atualmente a orientação por GPS, que permite uma maior precisão nos trabalhos e um aproveitamento geométrico das parcelas sem precedentes. Embora esta tecnologia venha sendo utilizada desde os anos 90, foi nos últimos cinco anos que se tornou possível explorar com maior eficiência o seu potencial, graças aos avanços nas ligações sem fios, ao aperfeiçoamento das linguagens de software e à sua correlação com os restantes acessórios digitais que vivem na maquinaria e à sua volta, fazendo com que, atualmente, seja praticamente um elemento básico solicitado em qualquer configuração de um trator.
Drones e Big Data, soluções tecnológicas que exigem profissionais para interpretar dados
Outros dos maiores desenvolvimentos comerciais nos últimos anos está relacionado com a proliferação dos drones, dispositivos que permitem, mediante diferentes tipos de câmaras, sobrevoar as culturas num período relativamente curto, obtendo nesse percurso centenas de milhares de dados, que após serem depurados e processados, se traduzem em índices de vigor, determinação de áreas com problemas de drenagem, identificação de problemas fitossanitários, levantamentos topográficos, etc., mas cuja tecnologia e uso requer conhecimentos e aptidões que obrigam os agricultores a recorrer a empresas terceiras com vista á sua utilização, sendo que apenas explorações agrícolas com um número de hectares capazes de amortizar esse custo podem recorrer a este tipo de tecnologia. No nosso país, incentivada pelo valor acrescentado do produto, a especialização na utilização desta ferramenta incidiu fundamentalmente na vinha.
Sem sombra de dúvida, a estrela do chamado fenómeno 4.0 é a enorme geração e tratamento de dados para muitas e variadas utilizações, mas a utilização de Big Data, para utilizar a sua denominação técnica, também tem inconvenientes. A geração maciça de dados cria problemas em termos de armazenamento e processamento, o que obriga a ter uma infraestrutura cada vez mais potente e, na maioria dos casos, obriga a externalizar novamente estas análises a terceiros, pelo que o agricultor não tem o controlo total sobre todas as ferramentas em que investiu, possuindo apenas os sensores e os dispositivos de medição, mas a informação é ininteligível sem esta análise ulterior.
Além disso, as qualificações e conhecimentos que é necessário adquirir para conseguir dominar o uso destas aplicações implica uma especialização que nem sempre é acessível para todos os públicos, até ao ponto em que surgiram novas profissões neste âmbito, como a figura do Data Scientist, com planos de formação específicos.
Em todo este contexto, não podemos esquecer que a agricultura é desenvolvida no campo, nas zonas rurais. No nosso país, 7% da população dispõe de uma ligação deficiente à rede de dados, a Espanha desconectada é uma realidade e não podemos pedir rendimentos otimizados, inovação tecnológica, incorporação das últimas novidades e tratamento dos Big Data em zonas onde não existem as condições mínimas para garantir um tráfego de dados e uma comunicação eficazes entre dispositivos e a nuvem de armazenamento.
A IA, um investimento para grandes explorações, em culturas de alto valor
Também não devemos esquecer que todas as tecnologias descritas têm um custo e que a utilização de Big Data e IA (Inteligência Artificial), entre outras, destina-se maioritariamente a uma agricultura de precisão em culturas de elevado valor e, preferencialmente, em explorações com dimensões que permitem minimizar o impacto económico da utilização destas soluções, mas quantos são os agricultores proprietários de pequenas e médias parcelas de terreno no nosso país? A resposta é que 67% das explorações espanholas têm uma superfície inferior a 10 hectares (INE, 2019), pelo que estamos perante uma solução cuja utilização quotidiana não é acessível para a grande maioria, uma vez que os problemas de preço na origem, a pressão crescente do mercado sobre os preços, as legislações internacionais, etc., resultam em margens tão minúsculas que, decididamente, a maioria das explorações não pode utilizar esses serviços regularmente, impedindo que todos os agricultores tenham livre acesso à informação que lhes permitiria reduzir os riscos da sua produção, torná-la mais sustentável, antecipar fenómenos meteorológicos através de modelos de previsão, ou simplesmente, produzir mais e melhor.
A maioria da terra cultivável encontra-se em África e na América Latina, onde a agricultura 4.0 é uma miragem
É de sublinhar que esta problemática surge, essencialmente, na agricultura dos países industrializados, porque se analisarmos o resto do mundo e centrarmos atenções nos países que contam com uma agricultura de subsistência, ou uma agricultura com um nível meramente básico de mecanização e tecnologia, o fosso digital é de tal ordem que a distância para nós pode tornar-se intransponível. Que sentido faz ter uma rede de sondas ligadas a uma estação agroclimática em qualquer cultivo na África Subsariana? Precisamente onde a eficiência e a deteção precoce de fenómenos meteorológicos seriam mais importantes, estas zonas vivem na mais absoluta escuridão digital. Não esqueçamos que, segundo a FAO, mais de metade da terra propícia para a agricultura em todo o mundo está concentrada em sete países, divididos por África e pela América Latina, onde a Agricultura 4.0 está longe de ser uma realidade.
E os últimos avanços em matéria de tratores e maquinaria, como é que poderão tirar partido deles? A luta contínua entre os grandes fabricantes do setor para se adaptarem às novas normas em primeiro lugar, e a ânsia dos países em legislar sobre o meio ambiente, incluindo todo o tipo de novas homologações e restrições, faz com que hoje em dia adquirir um trator em alguns destes países seja uma tarefa impossível, uma vez que uma máquina que precise de ureia para o seu funcionamento não pode ser utilizada em diversos países que não dispõem desse produto quotidianamente para o abastecimento de veículos, sem falar da mão de obra especializada necessária para preparar ou realizar a manutenção dessa maquinaria, ou da falta de uma simples peça em países sem representações comerciais, que obriga a importar a mesma a um custo elevado, paralisando a máquina durante mais de 20 dias.
Democratizar a agricultura 4.0, o desafio para concretizar o ODS Erradicar a Fome
Está a alargar-se a crença de que a agricultura 4.0 será a panaceia da humanidade, que será o elemento necessário para alimentar os 9.700 milhões de pessoas previstos para o ano 2050, mas atualmente, apenas alguns privilegiados têm acesso real a essas tecnologias e, entre aqueles que as têm ao seu alcance, a maioria subutiliza as mesmas, porque não pode pagar os serviços relacionados com a sua devida exploração e utilização. Por conseguinte, devemos trabalhar para democratizar a sua chegada a todos os agricultores, em vez de enveredar por corridas a solo, para ver quem é que implementa a tecnologia mais moderna ou qual é o último avanço no setor que maravilha a humanidade.
É preciso investir muito mais na formação, na transferência tecnológica, em aproximar as ferramentas informáticas do meio rural, de forma gradual e escalonada, em garantir que as estruturas nas quais se apoiam a recolha de dados e a sua análise são sólidas e fiáveis, e em fomentar e incentivar a utilização das novas tecnologias, tornando-as úteis e acessíveis. Definitivamente, trata-se de estabelecer uma base que permita crescer e não acentue ainda mais o fosso digital existente entre a parte da frente e de trás do comboio.
Sergio de Román Musulén
Diretor de Agricultura, Pescas e Desenvolvimento Rural